Eram um casal daqueles cuja história se repete. Ela, aos 15, para sair de casa, sonhava em se casar, ter sua própria casa, filhos, horta e televisão. Ele, aos 18, para descansar a mão, queria arranjar uma mulher, que não fosse sua mãe, para fazer sua comida, lavar sua roupa, que fizesse um carinho, lazer e filhos. Ah, e queria ter um açude para criar peixes. Conheceram-se quando seus pais discutiam negócios. Um boi por um cavalo. Um porco por um galo. Uma fêmea pelo macho. Ele achou bom. Ela pensou: é o que temos pra hoje, e achou bom também. Não aguentava mais: está na hora, já é moça, princesa, a tua prima, a vizinha e a filha da Cleyde já, e tu, cadê?
– Tá, eu vou. O pai deu um pedaço de terra dos fundos para construírem o seu novo lar. Ele, habilidoso, trabalhador, musculoso, sem dente, mas charmoso, foi na mata, tirou umas piranheiras, umas palhas, umas paxiúbas e construiu o ninho de amor (este que ainda não existia, mas diziam que era questão de tempo: uma hora você aprende a gostar). Cláudia sentou-se.
Matou-se um porco, pescaram-se alguns peixes, fez-se brasa e muita festa na família para celebrar a mais nova união, em nome de Deus, a mais nova chuva de benção – em julho- naquela comunidade. Só se pensava nos netos, bisnetos que estavam por vir. Ela pensou que por mais que nem conhecesse seu companheiro, não deveria ser tão difícil ter uma vida a dois, de início, mas depois a três, a quatro, a cinco...quanto viesse e quanto coubesse na casa. - Quero muito menino, ó. Correndo, se trepando nessas árvores, ajudando a descascar macaxeira, cavando buraco. Menos trabalho pra gente, né? Riu. Ou não, eu completei mentalmente.
Cada um levou o que era seu, quase nada, pro barraco com cheiro de madeira morta. –Tu gosta de mujangué? – Tu prefere chuva ou sol? – Acha que o padre é biba?. E foram se conhecendo. Os anos se passaram, a Cláudia que esteve sentada por muito tempo, levantou-se e eles passaram a se gostar. O dinheiro da agricultura não era muito, mas sempre foi o suficiente para alimentá-los, os dois e um embutido na mãe. Quase três. Seus pais se mudaram pra cidade e o terreno ficou grande e vazio para duas pessoas e meia. Enquanto ele trabalhava no quintal, construindo cercas de mulateiro para o gado não fugir para o terreno do vizinho, ela reclamava do peso do meio em sua barriga. Mesmo antes de o pequeno pensar em vir ao mundo, ela sempre pedia: Môr, quero uma televisão. Me sinto muito só. As irmãs tinham ido morar na cidade, estudar e trabalhar. O cachorro ainda não falava, era pequeno. A vizinha era velha e não conseguia conversar nada que não fosse relacionado aos malditos porcos que comiam sua macaxeira. Além de tudo ela cheirava a óleo de copaíba. E cheiro de corpo, claro. Os anos se passaram, ele a construir cercas, ela a reclamar da solidão e do desejo da televisão. A resposta era sempre a mesma: - Tá doida, mulher. Televisão não é coisa pra gente não. Aquilo ali é o demonho. Só passa coisa que não existe pra gente, que nunca teremos, lugares que nunca iremos, quer que a gente gaste o dinheiro que não temos e que acreditemos na ciência. O pastor disse que a Tv aliena que nem aqueles que vêm nas naves do céu, de vez em quando. – Mas eu quero uma televisão, ela disse. Me sinto só. Quero ver novela, quero ver como é o mundo lá fora. Mas não vai ter, na minha casa não entra esse instrumento do capeta. Somos mais felizes que aqueles casais da novela. Me dá um copo d’água, encerrou a conversa, à contragosto.
Os anos se passaram, a família ganhou novos integrantes, um por ano, assim como a flor que ele tinha trazido pra ela da mata, florescia a cada menino novo. Era uma lindeza só. Mas a solidão e o desejo da televisão continuavam a existir. Ele a construir cercas, ela a reclamar, cada vez mais com aquela cambada de meninos, da solidão. Nunca tinha ido à cidade. Não fazia idéia de como era. O pai nunca deixara por medo de não querer voltar mais. Tinha uma construtora trabalhando na pavimentação da rodovia. Tinha muito homem. Muito homem querendo mulher. Com dinheiro. E era tudo isso que as mulheres queriam: homem e dinheiro. Uma chance de sair da roça, do assentamento, da poeira, da pobreza.
Uma criança ficou doente. Depois outra e depois mais uma. Daquelas doenças que não dá pra esperar passar tomando chá de casca de ipê-roxo ou copaíba e descansando. Precisavam ir à rua. Precisavam de um médico. Ele precisava construir cercas. Ela acabou levando as três crianças enfermas e o filho mais velho pra ajudar. Chegando à cidade, as crianças tiveram de ser internadas. Era grave, mas a mãe estava tranqüila: no quarto do hospital tinha uma televisão. Ela ficou maravilhada, assistia com atenção cada palavra e cada som enquanto a criança chorava desesperadamente com dor, ela só conseguia ver as propagandas de viagem pelo mundo, as mulheres bonitas, bem vestidas, passeando em Ipanema. Foram três semanas de muito entretenimento, alegrias, tristezas (acompanhou fervorosamente todas as novelas) e muita informação pelo Jornal Nacional.
As crianças receberam alta e estavam bem para poder voltar pra casa. Quem as acompanhou foi o irmão mais velho. Chegando lá, o pai que tinha acabado de construir a última cerca do dia, olhou pro menino como se já soubesse. O menino tirou do bolso um papelzinho escrito com letra de quem acaba de aprender a escrever: “Você pode não querer uma televisão em casa, mas não pode me impedir de sonhar.”
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