segunda-feira, 22 de março de 2010

ela também tinha bunda de passarinho.

Do que passou e do que ainda fica.

É de lá, o vento que tem cheiro de sal, areia e bloqueador solar. Lá, onde a poeira é fina e dá até pra varrer sem perder de vista. Seria uma varrição infinita, pois tão infinita quanto ela, só mesmo aquela no fundo daquele também, mar. Lembro de vir andando, com o sol ardendo e queimando os cabelos escuros, tornando-os avermelhados. Lembro também que quando era criança queria ser ruiva. Apelei para opções artificiais, já que escolher um pai ruivo, ou mãe com alelos recessivos e nascer denovo ainda não era possível. Foi bom enquanto durou. O cabelo foi de outras mil cores. Não mil, mas umas cinco foi. O problema é que pra família, a imagem de si que fica, é sempre aquela que você faz questão de esquecer. Nem sempre.

A fachada tinha mudado de cor, depois de tanto tempo sem voltar lá, errei o endereço. Olhei pro canto do muro e lembrei das roseiras que furavam o dedo quando criança. Viraram concreto. - É mais fácil de lavar. E eu balançava a cabeça concordando pra não ter que discutir a imporância de se ter solo, grama, terra na sua casa. Ia demorar demais e além de estar com preguiça e com sede, ia dar muito trabalho.

O corredor sempre foi escuro. A mesa da sala de estar de madeira boa. Não precisa ser um bom conhecedor de madeiras pra saber quando uma é. Um quarto à direita tinha se transformado em dois, onde uma prima, até então desconhecida, assistia um desenho animado na tv, comendo tangerina. A vó gritou: - Menina, não vai me melar a blusa, oxente! Ela me olhou, melada até a testa e sorriu. Sorri também. Não me custava nada.

Em frente a mesa da sala, um parapeito com casamentos, batizados, aniversários de criança, velhos em sua juventude, irmãos, parentes, o cachorro, já então falecido, um paninho de renda verde e um monte de gente pra mim desconhecida. Pensando bem, já era tarde de mais para conhecer algumas delas.

Sigo em frente, lembrando que quando era menor, ele costumava colecionar telesenas na gaveta de madeira que tinha cheiro de fungo. Tinha também uma máquina de escrever e umas revistas de mulheres bonitas, bem bonitas. Era o que eu sabia naquela época. Hoje em dia o lugar virou uma outra sala, com um sofá também mofado, as mulheres já estão idosas ou mais que isso. E as telessenas, foram recaptalizadas.


Na parede e na porta, retratos saudosos. E alguns fungos também. Era bem úmido e choroso aquele lugar. Olhei pra mim, há anos. Sem alguns dentes, mas os olhos eram os mesmos: duas jaboticabas em forma de gota inclinada. Os cabelos lembrando meus ancestrais absurdamente desconhecidos. Senti um cheiro de picolé de côco que ela fazia e das fivelas de cabelo que ela me dava. Eram feias, eu nunca usaria, mas sempre guardei como forma de respeito. Apesar de nunca tê-la por perto, e eu nem queria, fiquei triste e de coração mole.

Outro quarto escuro, parecendo uma cela. O cheiro também não era agradável. Ser velho e dependente é degradante. Estava ela, sob ossos e peles, deitada numa cama de madeira também. Ele, em vida, era marceneiro, carpinteiro e sabia fazer as coisas.

- Como você está gordinha. É..saudável,né?. Alguns minutos de interrogatórios repetidos, me despedi como se fosse a última vez. - Fica com deus. - Mande lembranças à sua irmã. - Tá, eu dou, eu dou. - Vá à praia, faz muito tempo que eu não vou lá. Vi umas lágrimas escapando entre a brecha que abriu entre os olhos e a pele de bochecha, mas era comum, era muito emotiva.

Fui ao sofá, enfiei a mão na lateral pra ver se achava algo que tinha escondido há décadas. Não achei, óbvio, mas tive aquela sensação de alívio e uma vontade louca de tomar banho no mar.