Eles achavam que era tudo uma questão morfológica. Vinha do norte, nordeste, sei lá, das bandas de lá. Afinal, ninguém é obrigado a saber os estados das outras regiões do Brasil que não sejam do sudeste ou do sul. Pra quê, né? Se as coisas boas que existem aqui não existem por lá. Palmeiras, sabiá. Sei lá denovo. Sei que foi muito cuidadoso ao me contar que certa vez, depois de muito tempo passar viajando por esses caminhos meio desconhecidos, pouco cartografados e hidrografados, parando em lugares que nem georeferenciados foram - vejam que absurdo!- onde o silêncio era o que mais se ouvia, este que havia tanto nas bocas quanto nos vácuos por que quando se é um viajante, de longe, pode-se causar certo estranhamento, uma situação um tanto intrigante.
Tacitamente era admirado, rodeado, ouvido e sentido. Passavam que nem cachorro por perto dele para tentar entender o que se passava com aquele falar, aquele jeito, aquele cheiro. A maneira que posicionava seus pés ao descansar. A quantidade de dobras que dava na barra da calça para não sujar a lama que coçava suas sandalias de borracha. -Havaianas, pronunciou o bêbê. apontou para seus pés, bateu palmas e fez pais, primos e tios sorrirem. -É, mas é do Brasil. Sorriu meio sem graça por perceber, só depois de ter dito, que podem não ter entendido. Podem nem saber que havaianas podem ser mulheres, pessoas ou coisas do gênero feminino, que vem do havai e nem que o havai é um lugar. -O Havaí é aqui disse o mais velho da comunidade, meio sem dente do lado direito, meio cansado em todo seu corpo- de não fazer nada- e com os cabelos meio brancos. Todos sorriram fingindo entender aquilo tudo. Eles dois entendiam.
Ele não era diferente dos outros. Não era um gringo. Não tinha a pele branca, nem os cabelos loiros, muito menos olhos azuis. Tinha a cabeça chata, queixo e feições quadradas, mas não chegavam a formar ângulos obtusos.Ele não era um desenho animado. Era real. Baixinho, corpo forte de quem trabalha. Diferente dos fortes que exercitam seus músculos localizados. Acredite: é muito diferente. Suado parecia uma escultura brilhante à luz do sol. Eu olhava mesmo, por que eu achava bonito e assim também faziam os outros. Mas olhavam por outro motivo que eu, claro. Nem sei por que falei isso aqui agora.
O que intrigava não era sua feição. Era seu falar. Quando ele começava todo mundo se calava para ouvir e entender como aquele som de sua boca saía. A voz..bem, a voz era normal, voz de homem forte que de vez em quando fuma tabaco, que canta hinos na igreja, que toca violão e que imita o padre Marcelo Rossi- de vez em quando- capaz de enebriar mocinhas necessitadas de ouvir elogios. Não a mim. Eu não.
- Por que que tu fala assim? Tua língua tem problema, é? perguntou uma mocinha envergonhada, mas atrevida.
- É igual a sua. Pode ser um pouco mais suja, por que não tô acostumado a escovar a boca com frequencia, mas é igual a sua.
Rolou um burburinho. Eles começaram a comentar baixinho, zuniram, uma galinha deu uma cacarejada, dois cachorros se pegaram na peia, de leve, um latido, uma velha graniu algo incompreensível batendo os pés e as mãos, um gato se esfregou na perna do banco de madeira, a fim de aliviar a coçeira de suas pulgas.
-Rapae, é não. tu fala estranho. A tua língua é menor, é? Me ensina.
-Tu tá é ficano doida, minina. E saiu.
Referiam-se ao seu sotaque. Agora eu sei, que é do 'nordesti', como ele disse. enquanto ele virava as costas, uma criança veio correndo, puxou sua calça, sinalizando que queria falar algo no seu ouvido:
-Quando eu crescer mais um pouco tu corta a minha língua pra eu falar assim 'direitinhu' que nem tu?
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